quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O que não cabe em um veleiro?

Boas!

Em qualquer atividade humana nós nos deparamos, no dia a dia, com diversos tipos de pessoas. Na vela não é diferente. Talvez por uma questão que esteja no inconsciente coletivo e no imaginário popular, um veleiro com sua aparente calma e tranquilidade atrai pessoas que tendem a ter uma certa leveza na alma, ou se não a tem ainda, anseiam por ela.

Porém, de quando em vez, aparece um ou outro aluno - ou candidato a aluno - que traz uma bagagem mais pesada: querem rigidez na programação, pré-definição de tudo o que vai acontecer durante a aula, simulações audiovisuais com imagens de satélite (é sério!). Mais de uma vez um ou outro se identifica como "executivo" de uma grande marca e aponta com o dedo em riste o que chama de amadorismo, falta de profissionalismo, etc. Na sequência se dispõe a investir no negócio e se mostra um gentil salvador samaritano. Não estou sendo específico. Hoje recebi um e-mail assim, é verdade, mas não foi o primeiro e não será o último.

Ocorre que velejar envolve muito mais coisas do que caçar cabos, içar velas, cuidar do material e montar um cronograma rígido e imutável. Duas devem ser as lições imediatas: a primeira é que não há como controlar o mar, o vento, o tempo. A segunda é que o mar não perdoa os impostores, frase do Tabarly.

Velejar é jogar xadrez com os elementos. Como jogadores devemos conhecer cada peça. Podemos ter uma jogada ensaiada, como um cheque pastor para pegar os novatos ou uma defesa siciliana, para dar ares de profissional. Mas uma vez começado o jogo ninguém ao certo sabe como será o cheque mate. Ninguém. O velejador conhece todas as peças de seu barco. Mas não controla quando será preciso usá-las. Ao sair do porto, nunca tem certeza de que horas chegará no destino, nem se terá que dar meia volta ou buscar abrigo em outro lugar. O velejador tem que esperar sempre o inesperado e movimentos coreografados milimetricamente pré-definidos não combinam. Não dá para saber tudo o que acontecerá e grande parte da beleza está justamente nisso. 

Sendo ainda mais claro: São Paulo não cabe dentro de um veleiro. Não falo da cidade, mas do estado de espírito das pessoas da cidade grande e da megalópole. Em um veleiro não cabe pressa. Não cabem buzinas. Não cabe passar duas horas dentro de um carro apenas para chegar ao trabalho - e para chegar já atrasado e cheio de tarefas pendentes. Não cabe não ver os filhos crescerem. Não cabe não sentar com a família para fazer as refeições. Não cabe ir se deitar sem dar um beijo de boa noite na esposa. Não cabe não ser solidário com o seu irmão do mar, ou ignorar suas dificuldades e sofrimento. Em um veleiro não há lugar para apenas ver a vida passar: ele exige, sempre, sempre e sempre, protagonismo.

Algumas noites eu assisto um programa no Discovey Channel chamado Low Rider Brasil. Os caras fazem uns carros que eu acho horríveis e que pulam como carneiros ao custo de pequenas fortunas. O líder da trupe fala errado e é grosseiro. Mas eu aprendi a respeitá-lo pois ele tem na alma algo que nós velejadores também temos: o respeito ao que ele chama de "cultura". Algo que como ele diz em seu jeito simples de falar não é uma questão de dinheiro, mas daquilo que ele chama de "atitude". 

Na vela também é preciso ter atitude, algo que não se ensina, não se vende, nem se compra. No mar não há lugar para os impostores.

E vamos no pano mesmo!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Novos rumos...

Boas!

Quem acompanha nosso trabalho na escola de vela deve ter percebido que nosso volume de trabalho cresceu um bocadinho, a ponto de eu sozinho não conseguir dar conta de toda a demanda. Por conta disso meditei bastante e cheguei até mesmo a pensar em abandonar o direito e seguir nessa inteiramente. Contudo, bem feitas as contas, ainda não é o momento. A pastinha "contas a pagar" ainda não permite.

Ficou, então, a questão no ar: O que fazer? 

Aproveitando algumas conversas prévias a solução foi ampliar o número de barcos e o número de instrutores, o que na prática acabou fazendo de nossa escola de vela uma das maiores do país - se não a maior.

A partir de março de 2015 a coisa estará assim dividida:

As aulas do curso básico serão ministradas apenas em Guarujá e em São Paulo, na represa Guarapiranga. Para isso usaremos três barcos: o Grandpa (Fast 230), o Meltemi (Farr 32) e o Mais Bakanna (Fast 230). Os instrutores serão, respectivamente, Juca Andrade (Grandpa),  Alan Trimboli (Meltemi) e o Alexandre Dangas (Mais Bakanna). Os dois primeiros ministrarão aulas em Guarujá e, o último, da represa de Guarapiranga, em São Paulo.

As travessias de instrução (dois dias e uma noite a bordo) serão todas realizadas a cargo do José Spinelli, capitão do veleiro Soneca (Samoa 34), a partir do Saco da Ribeira, em Ubatuba; A cargo dele ficarão, também, os Explores (imersão de uma semana a bordo), sendo que o primeiro deverá ser realizado no mês de abril de 2015 e o segundo, em outubro, seguindo nossa programação base.

Todos os instrutores seguirão a metodologia da escola e as aulas serão padronizadas, de sorte que não haverá diferença em se fazer aulas com um, ou outro. Temos uma metodologia própria e buscaremos mantê-la fiel.

Além disso faremos de tempos em tempos travessias especiais, em especial a Angra - Rio e a Rio -Angra, a bordo do veleiro Caulimaran II, do nosso amigo e parceiro Ulisses Schimmels.

Novos ventos, novos tempos!

E vamos no pano mesmo!

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

De Ubatuba a Santos no Malagô.

Boas!

Há tempos eu precisava trazer o Malagô para Santos para fazer o fundo. Mas ia sempre adiando. Contudo chega uma hora em que não é possível mais adiar e essa hora foi durante esse carnaval. Cheguei em Ubatuba no sábado, com as meninas todas e a sogra. Demos uma geral durante o sábado e o domingo e na segunda, ao meio dia, saímos em direção à praia da Fortaleza, onde passaríamos a tarde. 
O Malagô em sua poita, em Ubatuba.
Um pouco antes de chegarmos, porém, a Priscila olhou para mim e eu entendi: desviei a proa alguns graus e seguimos até Ilhabela. As meninas estavam preocupadas com o fato de eu fazer a travessia de quase cem milhas em solitário e fazer aquela perna comigo seria tranquilizador para elas. O mar estava baixo e não havia vento. Seguimos apenas no motor. 

Na altura de Caraguá a chuva veio com força e molhou até nossos ossos. Mas foi divertido. Antes do sol se por ancorei (no ferro mesmo) ao lado do Iate Clube de Ilhabela e ali passamos a noite, ao lado de outro veleiro de madeira, o Horizonte. Na manhã seguinte mudei para uma poita no Saco da Capela. Deixei as meninas na praia e fui resgatar o carro em Ubatuba, o que de ônibus e com o trânsito levou um dia inteiro.

Rumo à Ilhabela!

Alice e sua roupa de tempo...

Brida tomando banho...

... e fazendo careta com a mãe.
Quarta-feira, bem cedo, as meninas desembarcaram e seguiram de carro para Santos. Enquanto eu preparava o Malagô para partir o Jazz IV, do Volnys, se aproximou e me esperou para seguirmos juntos. Como no motor ele é bem mais rápido que o Malagô,  logo nos distanciamos, porém.

Carona do bote do Iate Clube de Ilhabela na volta do posto flutuante.
A travessia foi bem tranquila. nada de vento e mar baixo. Como único problema a correia do motor estava sendo dilacerada por conta de algum mal alinhamento de polias. Segui a cinco nós e parei nas Ilhas, onde pretendia pernoitar. Ancorei e fui fazer um macarrão. Nisso chegou uma escuna, a Iluminati e eu, sem motivo algum, acabei sendo antipático: subi o ferro e toquei para Bertioga.

Na chegada peguei uma chuvinha que atrasou um pouco as coisas. Para ajudar a correnteza do canal estava absurdamente forte e por segurança voltei e pernoitei no Indaiá. No dia seguinte esperei o horário da maré e entrei no canal sem esforços. Apoitei no Chinen e fui para casa.

Chouveu um pouquinho...

... e eu me abriguei no Indaiá...

... até o dia seguinte.

Sexta-feira foi o dia das festividades do lançamento do Cruzeiro do Forte São João, do qual fui um dos organizadores (ABVC). Após um dia bastante cheio de atividades liderei com o Malagô a saída dos veleiros, numa festa bastante bonita. Para não ir em solitário levei minha filha Brida (que não gosta de velejar). O clima estava tão bacana que ela milagrosamente disse: "- Vamos para Santos pelo mar?".

Não pensei duas vezes e antes que o surto passasse subi a genoa e aproveitando a lestada genoerosa que entrou voltamos velejando, a noite, vendo as estrelas e as luzes de Guarujá. Ela me fez bastante companhia dormindo profundamente desde a primeira hora de uma travessia de quatro...

Ao chegar no clube forcei a barra (literalmente) e entrei em uma maré muito baixa. Encalhamos na lama. O jeito foi esperar mais duas horas pela maré, que veio no horário e nos safou da onça. Para descansar de tudo isso dei aula de vela no sábado e no domingo, pois ninguém é de ferro.

O Malagô, fazendo sucesso  lá no CIR.
E vamos no pano mesmo!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Meteorologia para navegantes - parte três.

Continuando nosso assunto, vejamos a carta sinótica de 11/02/2015:



Da análise da imagem (clique para ampliar) podemos tirar algumas lições.

Na área Charlie (que vai de Santa Catarina até o final do Rio de Janeiro) a pressão está na casa dos 1016 e está assim ao longo de uma grande área. Sabemos disso pois não há isóbaras por perto, o que demonstra que a pressão sob a área está uniforme. 

Imagine um embolo de seringa. Tampe com o dedo a entrada e puxe o embolo.Você sentirá o vácuo sendo criado e sugando a carne de seu dedo. Ao soltar, porém, o ar em volta - pressão mais alta - imediatamente preenche esse vácuo. Com a atmosfera é a mesma coisa: zonas de baixa pressão tendem a serem preenchidas pelo ar que está nas zonas de alta pressão. Haverá vento sempre em que houver diferença de pressão entre uma área e outra. .

O que irá determinar o quão suave ou violenta será essa transição é a diferença de pressão entre as camadas da atmosfera e sua proximidade. Hoje, pela carta, vemos que na área Charlie não há baixa pressão por perto capaz de gerar perturbações de relevo. Ir de Ubatuba para o Guarujá, por exemplo, é uma travessia que tem condições favoráveis.

Mas a coisa lá para o sul dá a dica de que algo está para mudar: na área Alfa vemos um cavado (instabilidade) em terra e uma frente fria no mar. Notem que a frente fria está associada a uma frente quente (sim, isso existe) representada em vermelho. Percebam que os ventos de uma tendem a ir para o sul e o de outra, para o norte.  Esse movimento pode dar origem a ventos ciclônicos. Ou seja, hoje, 12/02/2015, está tudo bem na área charlie. Mas se eu quiser fazer uma travessia no dia 15/02/2015, é melhor verificar como esse sistema que hoje está na área Alfa se desenvolveu. Ele pode ter se desfeito, ou ido para o oceano. Mas pode também vir para cá com vontade!

Indo mais para o sul, vemos a oeste da península Antártica uma grande depressão atmosférica, com centro na casa dos 956 Hpa. Notem que a medida que se afasta do centro a pressão aumenta gradativamente e que as isóbaras estão bastante perto umas das outras. Sem margem para erro sabemos que por ali a coisa está complicada. 

Temos uma grande depressão que está sendo rapidamente preenchida pelo ar das regiões de alta pressão, como o embolo da seringa. Além disso, vendo essa imagem - que acontece bem em cima de nossas cabeças vez ou outra - percebemos que na costa do Chile as isóbras estão próximas umas as outras ao longo de uma grande porção de água. Isso também nos dá conta de que a força dos ventos ali está grande, pois além de tudo o que já falamos há um componente a mais: uma pista longa e livre de obstáculos.

E vamos no pano mesmo!

Postagens relacionadas:

http://veleirobaldoso.blogspot.com.br/2015/02/meteorologia-para-navegantes-parte-dois.html

http://veleirobaldoso.blogspot.com.br/2015/01/meteorologia-para-navegantes-primeira.html

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Meteorologia para navegantes - parte dois

O domínio da interpretação das cartas sinóticas , ou cartas de ventos, demanda tempo e paciência.
O primeiro passo é dominar a simbologia básica, trazida nessas duas tabelas:




A carta sinótica é uma fotografia de um instante. Analisada isoladamente, nos dá apenas um retrato imediato do clima, o que pode não ser suficiente, pois o clima deve ser administrado conforme sua dinâmica. Traduzindo: não adianta eu saber, por exemplo, que há um frente fria no Uruguai, se eu não tiver dados que me indiquem se ela chegará ao local em que me encontro. 

Por isso, antes de uma travessia nós analisamos as cartas com certa antecedência, para entender a dinâmica que o clima está desenvolvendo. Há momentos em que queremos frentes frias, pois precisamos subir a costa; há momentos em que elas nos atrapalhariam. Algumas vezes trabalhamos no intervalo entre frentes, as chamadas janelas de tempo e entender o ciclo das frentes é de fundamental importância para uma navegação segura.

Voltando à simbologia, que é o assunto desse tópico, a carta nos traz uma série de informações. Partindo do exame de carta de 31/01/2015:



As linhas espalhadas pela área de representação são as isóbaras, ou seja, as linhas que indicam onde a pressão do ar é uniforme. Nas pontas de cada uma dessas linhas temos, por isso, a indicação da pressão barométrica.  Por exemplo, sob as áreas Charlie e Bravo há uma zona, circular, em que a pressão está fixa nos 1024 Mb. Um pouco acima, no final da área Charlie e início da área Delta, há a ponta de uma enorme frente fria, que termina em uma formação cilcônica no atlântico sul onde a pressão está na casa dos 962 Mb. Quanto mais baixa a pressão, mais severo é o clima.

Ainda analisando essa carta, sob cada área há uma seta com um bolinha. A direção da seta em relação ao norte indica a direção de onde o vento vem. Se bolinha estiver com o interior sem estar pintado, a visilbilidade é boa. Se estiver metade pintado, a visibilidade é moderada. Se estiver totalmente pintada, como o caso da carta ora em estudo, a visibilidade é bastante baixa. Na área Charlie os ventos vêm de quadrante norte e têm intesidade abaixo dos dois nós (veja simbologia de intensidade de ventos na primeira figura deste post).