segunda-feira, 4 de junho de 2012

O casaco vermelho...

Boas!

A Alice está na fase hiper mega power blaster bagunceira. Mexe em tudo, tira tudo do lugar, escala as cadeias de montanhas do safá e das mesas da casa.  A Priscila vai para a faculdade à noite (esse ano acaba!) e eu fico com as meninas. Dá um trabalhão (às vezes bem "ão" mesmo!), mas é o ponto alto do meu dia. Sou feliz de ter uma profissão que me permite ver as meninas crescerem, estar em casa todos os dias no almoço e no jantar, levá-las ao colégio e ir buscar. 

Numa dessas noites a Alice decidiu por a baixo todos os meus livros - e casa de advogado, via de regra, tem livro que não caba mais. Na hora da (re)arrumação, encontrei "Cem dias entre céu e mar", do Amyr Khan Klink. Havia uma fina camada de poeira na capa. As páginas da 32ª impressão da Companhia das Letras já estavam amareladas. Meus olhos se perderam no vazio por alguns instantes...

Sem querer a minha baixinha tão amada me levou para longe, muito longe. Em segundos eu estava novamente na manhã do dia 11 de dezembro de 1999, em uma livraria do aeroporto do Congonhas, em São Paulo, escolhendo um livro para ler durante o voo até Cuiabá. Depois de oito anos do mais absoluto silêncio, da mais completa ausência, estava indo reencontrar meu pai, aquela altura já carcomido pelo câncer. 

Eu já estava no mar, mas ainda não velejava.Tinha um caiaque mistral, modelo surfinho e a travessia a remo do Atlântico me soou um feito assombroso.  Devorei boa parte do livro no turbulento voo da VASP. Sai de São Paulo e também de Lüderitz; cheguei a Cuaibá e também à Praia da Espera.

Fiquei "amigo" do Klink.  Entre um cochilo e outro de meu pai, eu lia o livro na cabeceira da cama. Li para ele alguns trechos, mas tenho dúvidas se ele ouviu alguma coisa. De repente eu precisava absurdamente de um casaco vermelho. Um navegador de verdade tinha que ter um casaco vermelho e era isso o que eu queria ser. Fiquei com essa ideia em minha mente por muito, muito tempo.

Voltei para São Paulo no dia 15 de dezembro, às vésperas do ano 2000 - e aqui cabe um parenteses: para nós, viajantes do século passado, o ano 2000 era uma coisa absolutamente mágica. Se o mundo não acabasse no Armagedom nuclear, todos nós teríamos carros voadores, amigos vindos do futuro, robôs empregadas domésticas e telefones celulares! 

Em janeiro do novo milênio comprei um caiaque maior.  Ia começar a navegar para outras águas. Ir mais longe. Sempre mais longe. Remava todos os dias de manhã, sem trégua, sem descanso, cruzando meu próprio oceano (que já era "só até ali!"). Em um desses dias, encontrei uma nave vermelha atracada no Pier 26. 

Surtei!

No dia seguinte voltei com uma máquina fotográfica (de filme!) e bati trinta e seis fotos. Revelei no mesmo dia. Eram tantas fotos que se não estivéssemos na época do Windows 95 e do Netscape 2.1 dava para reconstruir o barco em 3D. Guardei uma dessas fotografias como marcador de livro - que nessas alturas já era outro, Mar Sem Fim, recém lançado.

Em agosto de 2000 "meu amigo" veio a Santos. Tarde de autógrafos na livraria Martins Fontes, na Avenida Ana Costa. Eu fui o segundo da fila. Ao abrir o livro, meu "amigãozão" viu a foto e a tomou em seus dedos: "- Já está com o mastro novo", disse com o ar meio tímido, meio blasé que lhe é característico. "-Mande um e-mail para o escritório e vá lá tirar fotos dentro do barco".

Caramba! Eu tinha vinte anos, um fiat uno preto ano 1997 e acabava de conhecer meu maior ídolo! E ele me "convidou" para ir na "casa" dele! Putz, se eu fosse mulher, eu ficava comigo!

Que fiz eu? Mandei o tal e-mail.

E outro.

E outro.

E depois outro...

Um dia veio a resposta: o barco estava docado, para reforma, e não poderia ser visitado. Achei estranho, pois eu o via na água, todos esses dias. E no dia seguinte, e no seguinte. Mandei outro e-mail.

Silêncio.

Anos depois eu estive muitas vezes no Pier 26. Tive a chance de entrar no barco vermelho, no barco novo e até naquela lanchinha horrorosa. Não quis.

Meu pai foi meu primeiro herói. Ele morreu no dia 17 de dezembro de 1999; Klink foi o meu último herói. Ainda sem saber, minha idolatria por ele, e por qualquer outra pessoa, morreu em 17 de agosto de 2000. 

Em 2012 tenho alguns casacos, de várias cores (inclusive vermelho) e começo a escrever minhas próprias histórias.



E vamos no pano mesmo!

10 comentários:

  1. Juca, já havia escutado essa história durante nossa travessia prá Santos, mas confesso que lendo seu relato, constatei o quanto determinadas situações nos'tocam', positiva ou negativamente. Expectativa e decepção andam juntos...mas nem sempre....pronto!! Filosofei!!rsrsrsrs

    ResponderEliminar
  2. Putz, meu amigo! Estou ficando velho e repetitivo! kkk. Vais para Paraty no feriadão?! Eu ganhei um "semi alvará". Vou dar aula no dia 09 e poder dormir no barco um dia antes e um dia depois!!! Bons ventos!

    ResponderEliminar
  3. Juca, muito bacana a sua história - meus sentimentos pelo seu pai. Tenho uma história também com os Cem Dias Entre o Céu e o Mar, parecida contigo, de ascensão e queda pela idolatria ao Amyr Klink. Li todos os livros, o primeiro li quando tinha uns 17 anos e ali meio que ficou definida minha atração pelo mar e pelas histórias das grandes travessias. Minha admiração pelo Amyr morreu esse ano quando tive contato com pessoas de confiança que tiveram contato com ele e que conhecem o backstage da sua trajetória. Apesar de tudo e todos, do alegado temperamento forte e coisa e tal, acho a invernagem e a travessia a remo dois grandes feitos.

    ResponderEliminar
  4. Valeu, Matheus! Só por nos apresentar o mar o Klink já tem muito valor. O resto são coisas da vida. Bons ventos!

    ResponderEliminar
  5. Boa Juca, Cem dias foi o primeiro livro que eu comprei com a minha própria grana, quando tinha uns 13 anos, foi resultado de duas limpezas semanais de uma piscina durante um mês. Com certeza foi o começo do meu sonho de sair navegando por ai.
    Abs.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O livro vale é ótimo. O tio Klink é um mestre no planejamento e gestão, e leva isso para a caneta. A história é muito bem conduzida: um "flashback" aqui, uma coincidência ali, uma aventura acolá, rodeada por uma aura de "não foi nada demais" que te convida a ir lá e fazer tbm. É um livrãoooo!

      Eliminar
  6. Mestre Juca, linda história, ótima narrativa, parabéns.
    Grande abraço.
    Fernando Previdi

    ResponderEliminar
  7. Tive um encontro com o Parati 2 em pleno oceano atlantico, cabo de são tomé, pela manhã depois de uma noite nervosa de 30Kns de vento em popa, nos cruzamos por través a uns 300m um barco do outro, nós descendo a costa num Fast395 e eles subindo a costa. O Barco deles aparecendo no meu AIS e provavemente o nosso aparecia no dele tmb, chamei pelo Radio canal 16, canal usado para primeira chamada em toda a região. Ninguem atendeu...
    Queria dizer para ele que ele foi um dos que me influenciaram estar ali, naquele momento. Mas parece que ele não quer saber mais dessas histórias, uma pena.

    ResponderEliminar
  8. Roger! Prazer tê-lo aqui! Sem entrar no mérito se isso é certo ou errado, a verdade é que o Klink não faz o que faz para os outros, mas apenas e tão somente para ele. Os livros, que tornam a coisa pública e fazem a gente viajar junto, são apenas meios de tornar a brincadeira (muito) lucrativa. Mérito dele (?) Velejador boa praça devia ser, esse sim, o Helio Setti... mas esse Deus já levou! Bons ventos e termina logo esse cat!!!

    ResponderEliminar