domingo, 8 de abril de 2012

Travessia Paraty - Guarujá em um atoll 23 - Abril de 2012 - Parte 01/02

Relato da travessia

No dia 02 de abril de 2012 eu e meu amigo Ricardo Stark deixamos a Ilha da Cotia com destino ao Guarujá. Mas essa travessia começou antes, quando eu decidi que não ficaríamos mais em Paraty (pelo menos não o ano inteiro). A primeira coisa que defini foi o tipo de clima que eu gostaria de encontrar pelo caminho: sol ameno, sem chuva, pouco vento e ondas baixas, ou seja, uma típica semana de outono. A navegação seria apenas diurna. Mas era preciso atenção, pois essas semanas costumam cobrar um preço alto: as frentes frias, quando entram, vêm com mais força.

Desde os primeiros dias de março passei a acompanhar diariamente, em suas duas rodadas, o meteoromarinha, serviço sensacional prestado pela Marinha do Brasil que disponibiliza além da análise do tempo e da altura das ondas, as cartas sinóticas que permitem visualizar melhor a previsão. Há até uma previsão detalhada para o litoral do Rio de Janeiro e uma ainda mais específica para a baía da Guanabara.

Carta sinótica do dia 03/04/2012.

Foi um período bastante interessante de estudo, pois no começo a simbologia e a linguagem é um tanto complexa. Eu sempre achei, por exemplo, que um cavado era um biquíni mais ousado! Ok, essa foi péssima...

Acompanhando a previsão deu para perceber que a semana de 01 a 08 de abril reuniria as condições ideais.  Aproveitei que o escritório não abriria nos dias 04, 05 e 06 e devidamente autorizado pela Priscila fui para Paraty, de carona com meu tripulante.

Eu e Ricardo preparando o Cusco Baldoso na Pier 46

No sábado - 31 de março - aproveitamos para por o barco em ordem. Já havíamos feito as compras na sexta (quarenta litros de água mineral, linguiças, provolone, salame, enlatados, massas, pães, frutas, verduras, doces e pratos pré-cozidos). Subi no topo do mastro, aproveitando a força do meu amigo Stark, para passar a adriça do assimétrico. Imaginei que ele nos faria falta pois a previsão era de ventos abaixo de dez nós e de través (SE).  Acertei, em parte.


A vista é linda...


... e balança bastante!

Orgulho gaúcho, tchê!

No domingo - 01 de abril -  saímos para velejar e testar tudo, inclusive como nós nos comportaríamos a bordo, já que eu e o Stark nunca havíamos velejado juntos. O motor de popa estava ok; o Zé (piloto automático - ST 1000) estava em dia e o assimétrico subiu fácil.  O Cusco adernou um pouquinho e  velejou bonito na merreca. A vela de proa seria uma buja 100% e no geral o plano vélico estava bem conservador. 

Foi ai que as coisas começaram a complicar um pouquinho. O motor de popa deu problemas no carburador e a adriça do assimétrico impedia que o enrolador funcionasse. Primeiro não enrolava nem desenrolava, depois apenas não desenrolava. Fundeamos na Ilha do Mantimento e resolvemos o problema da adriça da única maneira que encontramos: a eliminamos. Doeu, mas foi o que deu para fazer e apesar de certo aperto no peito, funcionou. Para compensar a trabalheira, avistamos vários golfinhos (o que aconteceria de novo, mais a frente e de forma mais intensa). 

Faltava ainda resolver o problema motor. Minha ideia era levar em um mecânico para limpar o carburador. Era domingo e isso só seria possível na segunda-feira, atrasando a travessia. Mas isso acabou não acontecendo, pois meu tripulante deu  uma grande prova de sua generosidade, de companheirismo e do quanto estava comprometido com aquele projeto que deixava de ser apenas meu, para ser nosso: fomos no vento até a marina do Engenho e trocamos o meu motor pelo Mercury 15 hp do Gaipava!

Estava tudo pronto. A travessia poderia começar. Aliás, já havia começado quando deixamos o cais da Píer 46...

O plano inicial era seguir até a praia do pouso (23º16'495 - 44º32'912), último ancoradouro seguro antes da Juatinga e bem pertinho dela. Mas já estava tarde e havíamos nos cansado baixando e subindo a buja na tentativa de resolver o enrosco. Achamos mais seguro, então, seguir para a Ilha da Cotia, onde fundeamos às 19h00. Sempre que estive por ali a pequena enseada estava repleta de barcos. Dessa vez éramos os únicos. Foi bom, mas também estranho. Um pouco depois chegaram mais duas lanchas, que passaram a noite pescando.  O voltímetro caiu um pouco - 11 volts - e cairia mais. Como sempre, subi um lampião de led para servir de luz de fundeio e depois da janta (feijoada!) fomos dormir.  

O crepúsculo na Ilha da Cotia, deserta...

Às 05h50 do dia 02 de abril recolhemos o ferro e ligamos o motor. Antes das 09h00 começamos a montar a Juatinga. Eu planejava me afastar umas cinco milhas, mas acabamos nos afastamos cerca de duas. Ganhamos altura depois que avistamos a Ilha Cairuçu. O mar estava liso e havia várias redes de pesca para desviarmos. Passamos a Ponta Negra as 13h00 e, então, subimos as velas. Vento de través, menos de dez nós, mar baixo. O Cusco implorava pelo assimétrico, mas não havia meio de subi-lo;  preferimos não trocar a buja pela genoa (ainda mas ali)... nos arrastamos até a Cabeça do Índio (Ponta da Trindade) a dois nós. Não estávamos mais no Rio de Janeiro, mas também não  avançávamos rumo ao Guarujá. Apenas nos afastávamos cada vez  mais da costa. Ligamos o motor. O voltímetro caiu para 9 volts e praticamente nada do sistema elétrico funcionava. O painel solar não recarregava as baterias (duas estacionárias de 70 amperes) e não usamos o carregador do motor de popa pois não sabíamos se os pólos estavam certos (afinal, aquele não era o motor do Cusco).  Após 14h19 de navegação e de quase cinquenta milhas, fundeamos na Ilha Anchieta. Jantamos (x-calabresa e uma gororoba de arroz que doeu para descer ) e fomos dormir.

Acertamos em cheio: a Juatinga estava dormindo (mas ainda assim, deu seus roncos).

Rumo à Ponta Negra.
Azul encontrando azul.

No través da Cabeça do Índio. Ao fundo, a Ilha das Couves.

No dia 03 de abril levantamos ferro da Ilha Anchieta por volta das 8h30. Fomos até o Saco da Ribeira e enchemos os tanques de gasolina. Até ali havíamos gasto trinta e oito litros, nossa capacidade máxima. Quando a Ilha do Mar Virado estava na bochecha de boreste, desligamos o motor e começamos a negociar lentamente nossa saída daquela bela baía. Ao meio dia estávamos no través do Mar Virado. Vento de través, mar baixo, sol ameno. O Cusco implorava por mais pano... A dois nós chegamos na Ilhabela às 18h00 e apesar da lentidão o dia foi bem divertido e silencioso. Ligamos o motor. Fundeamos no Saco da Capela em torno das 19h00 (com nosso próprio ferro, uma bruce de 7kgs, com doze metros de corrente e cinquenta de cabo). Jantamos e fomos dormir. Ou pelo menos tentamos. Para mim a ancoragem foi péssima. O mar batia muito e a todo instante nos lembrava que não estávamos mais na Cotia. Às 02h00 o vento entrou forte, com chuva. Fiquei no cockpit vigiando o fundeio. Estava louco para ir embora, sair dali. Só não propus isso ao Stark porque já havia aprendido que estar descansado é fundamental para que erros bobos (e potencialmente mortais) não sejam cometidos. Dormimos.

Ancoradouro na Ilha Anchieta. Alguém no antigo presídio nos guiou com uma lanterna. Obrigado!

Deixando o Saco da Ribeira.

Ilhabela, ai vamos nós!

A Ilha Anchieta vai ficando para trás...

...e  a Ilhabela fica cada vez maior.

No dia 04 de abril recolhemos o ferro às 05h00, sem sequer tomarmos café da manhã. Seguimos em silêncio, atentos a tudo ao redor. Às 09h00 já estávamos fora do canal, no través de Maresias, rumo ao Montão de Trigo, onde chegamos às 11h30. Sempre quis passar por lá... teria sido legal fundear e mergulhar, mas acabou que isso não aconteceu (dessa vez). Seguimos para o canal de Bertioga. Nada de baterias, nem no barco, nem no celular (que esqueci ligado, inutilmente).


O Zé não trabalhou desde a baía de Paraty. Nos revezamos em turnos de duas horas cada um no leme. Comecei a usar o Facebook para me comunicar com a Priscila (viva a Vivo Internet 3G, que funcionou bem desde a Juatinga, no notebook), aproveitando para deixar registrada nossa posição para os amigos velejadores (vai que, não é?).


Não velejamos  sequer meia milha nesse dia. Às 15h00 estávamos no través da Riviera de São Lourenço, quando muitos golfinhos cercaram o Cusco e fizeram a festa. É incrível como esse animal tão inteligente nos faz sentir como crianças... Às 16h00 estávamos no través da Pedra do Corvo, entrada do Canal de Bertioga.. Era quarta-feira e não haveria lanchas, pois as marinas estão fechadas (até nisso o planejamento deu certo!).

 Olhamos o tanque e mais trinta e oito litros haviam ido para o espaço. Navegamos no vapor de gasolina e, para fazer durar o nada que tínhamos, tocamos o barco a um nó. Abrimos a buja para ajudar, pois havia uma brisa. Dois nós. Para ajudar a correnteza estava forte e contra (assim como a chuva). Passamos pela balsa, pela Porto do Sol, pelas Nacionais... E, enfim, às 17h10 amarramos o Cusco na poita. A derrota estava cumprida. Foram cento e vinte e seis milhas navegadas desde a Ilha da Cotia, ao longo de trinta e seis horas de navegação, distribuídas entre três dias. Havia dado tudo certo.


Stark pagando mais um quarto de leme, no canal de São Sebastião.
O almoço que o Stark fez no último dia: a melhor refeição da travessia!
O Montão de Trigo.


O Canal de Bertioga. Como diria o brinquedinho da Alice: abeeeeeeerto!


Motorando no vapor de gasolina...


E vamos que vamos!


15 comentários:

  1. Juca, PARABÉNS pela travessia, e pela (excelente) narrativa! Abraços ;) Fernando Previdi

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  2. Puxa!! Eu participei disso tudo?? Que legal (gíria jurídica...) !! rsrsrsrs...Fico muito feliz, já que há algum tempo atrás, eu apenas lia sobre as navegações e hoje estou navegando também. Abraço!!

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    1. Melhor do que ler sobre o que os outros fizeram, é ir lá e fazer tbm. Parabéns!

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  3. Travessia recheada de paciência e persistência!
    Agradabilíssima leitura.
    Parabéns.
    Abraço,
    Roberto
    JPessoa/PB

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    1. De milha em milha se vai ao longe! Qqr dia vou chegar ai na Paraiba e vamos comer um belo de um bode assado!!!!

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  4. Parabéns pela travessia, recentemente levei meu pequeno MJ25 do Guarujá para Ilhabela. Encontrei os mesmos golfinhos perto do Montao do Trigo.
    Eles são realmente fantásticos. Dei um pouquinho mais de sorte pois com motor a diesel é mais tranquilo e o consumo é menor.
    Abs,
    Rogerio Vieira
    Veleiro Vayú - MJ25

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  5. Dica de livro nacional com várias aventuras de um Atoll 23: "Mil Milhas com o Sdruvs" do amigo gaúcho Luciano Zinn.
    Abraço,
    Roberto
    JPessoa/PB

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    1. Sdruvs! Um professor de física no colégio vivia me infernizando com isso... acho que foi assim que eu descobri a vela, mesmo sem saber. Grande livro!

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    2. Olá Juca, sensacional sua travessia e melhor ainda a descrição.
      Mas tire uma dúvida: o que é Sduvs?

      Abs,
      Paulo

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  6. Estou lendo agora e gostaria de fazer um comentário: Quando vc disse que foi guiado por alguém com uma lanterna no presídio.... O presídio é desabitada e proibida a permanência para pernoite......

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    1. Theo, isso não é exato.

      Ficam seguranças lá, além de muitas vezes os estudantes que fazem estágio no parque tbm dormem por lá. Não podem ficar visitantes. A pessoa da lanterna era um segurança, que depois conhecemos.

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