Boas!
Estou no mar desde 1996 (a remo) e comecei a velejar no ano 2000.
Meu primeiro veleiro foi um HC 14, de vela amarela, caindo aos pedaços
(literalmente). Tive muitos outros veleiros depois desse. Vários monotipos e um
outro par de veleiros de oceano. Em todos eles minha vontade de viajar, de ir
cada dia mais “só até ali”, era enorme. Devorara os livros de outros
velejadores e imaginava que, um dia, seria eu quem estaria cruzando os mares,
deixando terra pela popa e só a encontrando dias depois, pela proa.
No meio do ano passado (2017) uma
conjunção de fatores (alguns adversos, como meu divórcio, outros favoráveis,
como minha parceira com o José Spinelli Neto) permitiu que esse sonho de cruzar
um oceano fosse, enfim, realizado. Nascia, assim, o “Desafio Cusco Baldoso –
Soneca – África do Sul 2018”, com apoio de várias pessoas e empresas.
Eu e o Spinelli deixamos Ubatuba
a bordo do Soneca (Samoa 33 pés, projetado pelo escritório do Cabinho) na manhã
do dia 03/01/2018. Chegamos em Guarujá na manhã seguinte, onde fizemos uma
escala na marina Boreal, para embarcar o terceiro tripulante – Alan Trimboli –
e terminar de provisionar o barco.
A partida para Cape Town ocorreu
às 06h39 do dia 05/01/2018. Motoramos o primeiro par de horas, rumo magnético
210º (rumo ao sul). Nosso objetivo era descer até a latitude 37 S e lá
encontrar os westerlies, ventos de
oeste que sopram com força e favoráveis até o próximo continente. Ao meio dia
já estávamos velejando com mestra e gennaker,
vendo a última porção de terra dos próximos 38 dias: a Ilha Queimada Grande, no
través de Itanhaém.
Nossa travessia não foi muito
fácil. Não encontramos os ventos de oeste na latitude esperada. Para piorar,
uma forte tempestade nos fez subir da latitude 37 S para a 30 S – um enorme
retrocesso. Orçamos 70% do tempo. Fugimos de uma tormenta força 11. Fomos
apanhados por outra força 8. As ondas que lavavam o convés arrancaram boa parte
da vedação de sikaflex de alguns
parafusos e gaiútas e resultado foram goteiras que, apesar de pequenas,
causaram enorme desconforto.
Ainda assim, seguimos em frente e
após apanharmos um pouco – e desistirmos do tal vento oeste – aprendemos a
explorar o padrão de ventos que nos era oferecido. Quando ventava de NE, N e
NW, cerca de quatro ou cinco dias seguidos, seguíamos em frente e fazíamos
progressos consideráveis no rumo 120º M.
Depois do NW o vento rondava para SE, momento em que íamos para latitudes mais
baixas, no rumo 60ºM. Esse vento durava cerca de 24 horas e com ele nós
subíamos um grau de latitude (doía, pois parávamos de avançar). Depois do SE o
vento entrava de E e, nesse momento descíamos, inicialmente no rumo 180º M e,
depois, no 160ºM. Após mais um dia sem avanço significativo para a África do
Sul, o vento voltava a entrar de NE e a nossa dança recomeçava.
Nos torturamos muito tempo por
não achar os ventos de oeste onde os manuais diziam que ele estaria. Sabíamos
que lá pela Latitude 43 S havia esse vento, mas por lá havia depressões
atmosféricas maiores que nossa capacidade. Lendo, então, um guia de navegação
do Royal Cape Yacht Club, fomos “avisados” que em alguns anos, como em 2011, o
padrão de ventos entre a América do Sul e a África deixa de ser observado. Pois é, escolhemos
um ano atípico para essa travessia e, portanto, ela seria feita de maneira fora
do usual. Esse ano, 2018, era também um ano atípico.
A tripulação se entrosou muito
bem. Essa era uma preocupação, pois a bordo haviam três capitães amadores, cada
um dono de seu próprio barco e com uma visão particular de como tocar um barco
à vela. Por sorte nossas semelhanças eram maiores que nossas diferenças e cada
um pegou para si uma tarefa da navegação, com o respeito e a cooperação dos
demais.
Graças ao leme de vento tocamos
muito pouco o barco “na mão”, menos de 08 horas nos 38 dias. Isso foi
providencial, pois o convés era frequentemente lavado por ondas incrivelmente
geladas, o que tornaria turnos “lá fora” se não perigosos, pelo menos
incrivelmente desconfortáveis.
Nossa comunicação externa era
feita duas vezes ao dia, baixando e enviando e-mails através do telefone via
satélite e todas as noites fazíamos contato com nossos amigos radioamadores –
um momento sempre bastante esperado.
Os turnos de vigília eram feitos
em conjunto durante o dia e, à noite, em turnos de 03 horas. Com isso cada um
de nós dormia 06 horas todas as noites. Sono não foi problema, assim como a
alimentação. Estávamos abastecidos para três meses no mar. As carnes eram
armazenadas em conservas. A qualquer
hora tínhamos filé ao molho madeira ou lombo barbecue para matar a fome. A
maior preocupação eram os navios, que passavam relativamente perto. O Soneca
está equipado com AIS – automatic
identification system – e assim recebíamos dados de navegação de qualquer
navio em um raio de 32 milhas náuticas.
Fomos acompanhados da costa do
Uruguai até menos de 50 milhas de Cape Town por quatro Pardelas de Óculos. Os
albatrozes eram visita frequente, assim como peixes voadores que se estatelavam
aos montes no convés.
A chegada em Cape Town foi
emocionante. Avistamos terra na madrugada do dia 12 de fevereiro, trinta e oito
dias depois de sairmos de Guarujá: a silhueta quase sensual da Table Moutain,
cercada pela ardentia das ondas que quebravam nervosas, iluminadas por uma lua
discreta e amarelada.
Embora todos agora em terra me perguntem
sobre as ondas gigantes que quebravam no convés ou sobre os ventos de quarenta
nós. Para mim, porém, isso não é a parte importante dessa travessia. Em minhas
memórias prefiro lembrar das noites de planetário, em que o céu se
retroiluminava pelo brilho das próprias estrelas; do azul do mar e do céu em
suas variações quase que infinitas; pelas risadas que eu e meus amigos demos (- Você tem tempo para ouvir uma história?)
e principalmente do orgulho que dá saber que mesmo diante de tantas adversidades,
o Atlântico nos deixou passar.
E vamos no pano mesmo!
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